Artes

Para mostrar lado “invisível” da cidade, câmera se torna olhos dentro da favela

Documentário surgiu da necessidade de mostrar realidade na esperança de que as pessoas sejam um pouco mais humanas diante da dor do outro.

A lente da câmera mostra uma “realidade distante” aos olhos do expectador, que caminha entre as construções de lona e madeira ao longo da rua de terra, principalmente, quando levamos em conta o antigo discurso de que “Campo Grande não tem favelas”. Prova do contrário, o documentário “Mandela” narra a história de dentro da comunidade na região norte, criada em 2016.

 

Olhando para o público, o relato de Jaqueline Teles de Oliveira dá voz à realidade de quem aprendeu a sobreviver com o que tem, em um momento em que o mundo parece andar tão insensível. “Aqui é o nosso lar, porque na verdade, se eu tivesse condições de pagar o aluguel, eu não estaria aqui. Eu estou aqui porque não tenho para onde ir. Eu moro aqui, a gente não está aqui porque é uma diversão”, declara no teaser do documentário, com cerca de um minuto e meio de duração.

A trajetória de Jaqueline é uma, entre as muitas famílias no Morro do Mandela, que também dividem a tela com outros cinco personagens reais também dividem a própria experiência como moradores da “favela que não existe”. O documentário faz parte do Projeto Yalodê, que começou com a tentativa do Pai de santo Augusto de Lógunedè, de combater a intolerância religiosa e levar ajuda a quem precisa.

Voluntários do projeto e moradores durante a gravação de Mandela (Foto: Renan Dalago)

Depois de uma campanha de arrecadação não perecíveis que conseguiu apenas cinco quilos de alimentos não perecíveis e da dificuldade em conseguir que as “pessoas ajudem o próximo quando falta até para si mesmo”, Augusto decidiu mudar de tática e para isso contou com a jornalista Yorrana Della Costa e o publicitário Renan Dalago, responsáveis pelas imagens, produção e edição do documentário roteirizado por ele.

“Foi o momento em que pensei: Bom se existem pessoas insensíveis a dor do outro, então precisamos mostrar a realidade. A ideia é mostrar a existência das favelas. O Centro, a parte central, não tem favelas, mas se você for para as extremidades, vai encontrar quem vive nessa situação. Acredito que quando as pessoas tomam consciência do que acontece ao redor, elas passam a ver o outro de forma mais humana. Foi um meio de ser a voz deles através do projeto.”, explica.

A esperança é que o projeto possa fazer mais pela comunidade aumentando a rede apoio. As primeiras imagens já estão circulando nas redes sociais do Yalodê e a previsão é que o documentário inteiro esteja disponível em cerca de duas semanas, já que a execução é feita pelos filhos de santo, que conciliam a vida profissional e o trabalho voluntário, feito nas horas livres.

Augusto conta que o projeto começou com uma ação social, “sem noção das proporções que tomaria, mas com o desejo de fazer o bem” há cerca de cinco anos. “Fomos até a Cidade de Deus, organizamos uma ação levando em torno de 600 cachorros-quentes para a criançada. Depois disso foram kits de doces perto de são damião, era apenas uma vez ao ano, mas tomamos gosto pelas coisas e hoje fazemos ações cerca de uma vez ao mês”.

Jaqueline é uma entre as cinco moradoras que decidiram narrar a própria história no documentário (Foto: Renan Dalago)

Apesar de realizado por uma casa de axé, espaço ligado a religião de matriz africana, a ideia não é promover ideais religiosos. Entre os 70 voluntários do projeto, Augusto ressalta que existem evangélicos, católicos e kardecistas e está aberto para qualquer um que queira ajudar.

Ainda assim, existe quem se afaste do projeto ou recuse doações pelo preconceito religioso, ato que os voluntários tentam combater apresentando uma abordagem cultural. “Por exemplo, durante as festividades de yabás, divindades africanas femininas, as mulheres vestiram a roupa de baiana, com muita cor, e apresentaram danças com músicas na língua yorubá, de matriz africana. Acaba virando uma apresentação, que ajudou as pessoas a entenderem melhor o que é a nossa cultura. Existe o preconceito, mas você precisa colocar a cara no sol e fazer”, conta.